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Virginio, Sisa e sua “casa”

 
11 novembro 2022   |   , ,
 
© Alma Films

Uma história simples, mas cheia de significado, contada no filme “Utama – As terras esquecidas”, é a história de Virginio e Sisa, dois camponeses Quechua do planalto boliviano, por meio dos quais podemos refletir sobre questões delicadas como as mudanças climáticas, a crise socioambiental que disso decorre e o fenômeno migratório.

Assistindo ao essencial e belo Utama – As terras esquecidas (o filme boliviano que ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cinema Sundance e representará seu país no próximo Oscar), vêm à mente as palavras do Papa Francisco sobre «ecologia integral», contidas na encíclica Laudato si’, na qual ele afirma que «não há duas crises separadas,  uma ambiental e uma social, mas uma crise socioambiental única e complexa». Essas palavras simples e fundamentais vêm à mente ao ver a história – pequena, distante, mas universal – de dois agricultores idosos do planalto boliviano, Virginio e Sisa, que vivem na simplicidade de uma lida harmoniosa cultivando a horta e criando lhamas, trabalhando duro e querendo-se muito bem. Ele sempre lhe traz pedras quando chega em casa à noite: as mais bonitas encontradas nos pastos, como se fossem flores ou joias coletadas na natureza. São um sinal silencioso do seu amor.

 

Ainda hoje, enquanto repetem os gestos habituais – trabalhar, comer, ir para a cama – eles se tratam de uma forma afetuosa: Tato e Tata; e a mulher, em certo ponto do filme, lembra ao homem que eles «sempre disseram tudo», que eles sempre foram «um só». Agora, no entanto, depois que o filho partiu (há algum tempo) para a cidade, aquela planície enorme, uma garantia de vida serena e uma plenitude sóbria por anos, tornou-se árida e desnuda, e dar de comer aos lhamas tornou-se tão difícil quanto conseguir água: não chove há muito tempo naquela terra considerada sagrada por toda a comunidade Quechua, da qual Virginio e Sisa fazem parte.

O poço da aldeia não puxa mais água e é preciso ir até o rio para pegá-la, que nesse meio tempo tornou-se um pequeno canal na terra rachado pelo sol. «A chuva está chegando», repete Virginio para se animar, mesmo estando doente. «Ela não virá», ele ouve como resposta, «o tempo mudou.» «Esta terra está morta.» Mas Virginio persevera, até convencer outras pessoas da aldeia a subirem ao topo do monte para rezar. Ele os chama de «irmãos e irmãs» enquanto celebra com eles um antigo rito ancestral, no qual um lhama é sacrificado. É inútil. As coisas não mudam, e a comunidade se divide entre a vontade de resistir e a triste possibilidade de abandonar aquele espaço amado.

Seria uma «derrota», insiste Virginio, com a respiração ofegante e sua tosse contínua. Ele diz isso ao seu neto Clever, que veio convencê-lo a deixar tudo e ir morar (e se tratar) na cidade. Eis, então, que a crise ambiental e a crise social coincidem; eis, então, que morre, com a natureza, uma cultura habituada à profunda relação com seus ambientes. E sufocam, dentro desse sofrimento coletivo, os indivíduos, todas as pessoas comuns das quais Virginio e Sisa, ainda que em sua condição extrema, tornam-se de alguma forma paradigma, metáfora, testemunhando a interrupção do ciclo virtuoso entre generosidade do meio ambiente e o cuidado para com ele, daquela relação feita de receber e dar, amar e ser amado. “Utama – As terras esquecidas” aborda lentamente esse tema, com poucas palavras – mas certeiras -, confiando grande parte do poder comunicativo aos rostos enrugados dos protagonistas e à grandiosa paisagem ao seu redor. É a obra-prima de Alejandro Loayza-Grisi, que participou com sucesso de vários festivais internacionais, incluindo o do cinema espanhol e latino-americano.

A história segue a dramática ligação entre a crise ambiental e a crise social, alimentadas pelo aquecimento global e alimentando, por sua vez, o fenômeno migratório. Esse tema entra no filme com as discussões que dividem os moradores da aldeia, como aquela entre Virginio e seu neto Clever, com uma sequência fugaz, no final, em que caminhões carregados com pessoas deixam o planalto, sofrendo. Virginio não vai embora. Ele fica. Ele não renuncia à antiga comunhão com suas pedras, com suas tradições e seu trabalho. Ele voluntariamente se coloca fora do tempo, em uma solidão dolorosa e orgulhosa já anunciada pelas primeiras imagens do filme, quando caminha sozinho na planície abrasadora. «O que faremos na cidade?», responde ao neto. «Tratar-se a que preço? Deixando minha terra?».

Em sua casa austera, mas impregnada de significado (Utama em língua Quechua significa justamente “a nossa casa”), no final da sua luta interior, Virginio morre. Sisa está ao lado dele, e ela também decide não ir embora. Fica esperando pela chuva, ou talvez simplesmente ser apagada por um tempo em que passado e futuro pararam de se comunicar.

É ela, agora sem o seu Tato, que leva as lhamas ao pasto, em direção a um horizonte de dor, mas também de esperança indomável. É ela, depois de Virginio, que nos leva a refletir sobre a trágica correspondência entre uma crise do meio ambiente e a crise do homem.


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